Rui André Batista

Coisas

Roger Waters compôs, e é, o bar. Nada melhor que um bom bar para ficarmos felizes a ouvir o que não nos apetece, nos incomoda, comove, morde e eventualmente muda. Nos melhores bares muda-se para melhor.

No bar podemos, como cantou Roger, dizer o que nos apetece. Dizer sem julgamentos de maior e ser ouvidos por quem possivelmente discorda de nós. A isto chamava-se, antigamente, conversar. Agora parece uma experiência qualquer, transcendental e new-age, muito new-age.

Pessoas de quem gostamos a proferir as suas verdades estúpidas só se admite num bar. O único entrave está em ter que tolerar a restante estupidez de igual modo.

Nos bares com porrada ninguém conversa e são todos o mesmo.

Vivo com pressa entre as pedras da rua. Abdico de cismar com a lua Para a ver entrar pela janela aberta.

A minha janela ainda tem nódoas de vento, De vento frio. O calor débil desse alheamento Vai-se escapando pelas fendas do meu castelo cómico.

As tecedeiras não fazem histórias com roupa do contentor. A roupa estendida dias e dias por amor Morre com a chuva e o sol.

Apanhei a roupa da janela.

Entendamo-nos: se comecei esta frase na primeira pessoa do plural terá sido com a intensão de envolver o leitor, ouvinte ou entendedor no meu raciocínio. Talvez a isto se chame um diálogo ou parte de um diálogo.

Começar frases pelo infinitivo apenas faz sentido no caso em que se pretende usar o infinitivo do verbo, como aliás é bom exemplo esta frase. Sim, a frase anterior, não esta que é a seguinte da anterior. Peço desculpa pelo nó.

Gente que, em particular na oralidade mas não só, começa frases por “Dizer que...”, e diz; “pensar que...” e diz a coisa que estaria a pensar; ou mesmo “ver que...”, mais uma vez diz o que quer que os outros vejam, é gente sem sentido e que não merece ter os mesmos direitos que os restantes cidadãos da república.

A patologia do infinitivo é grave por si e pelo que a acompanha: os portadores desta maleita têm por sintoma adicional enumerar desideratos, que é coisa para dar cede.

As lendas que me contaram na infância envolviam, não raramente, magos do pontapé na bola. Fossem Os golos do Eusébio, a segurança do Mário coluna, o Pelé a jogar contra o Benfica ou a folha seca do Didi, a forma como o avô ou o tio sorriam ao descrever as façanhas dos seus heróis transpirava magia, veneração e esperança que esse tempo voltasse. O tempo em que também eles, em jogos de vida ou de morte num qualquer pátio de alfama, eram reis dum mundo de pés descalços e bolas de trapos. Mas reis.

Reviviam, invariavelmente e já meio entornados, os jogos de bola da sua vida: aquela final de taça de 1963 que acham que viram os dois no estádio nacional, o cinco a três do campeonato de sessenta e seis, os frangos do Costa Pereira que sabia cantar, e tanto mais. Porém, bastava uma divergência mínima para a coisa descambar e entrar em níveis absurdos de discussão familiar, coisa para se deixarem de falar durante semanas. A embirração de quantos golos marcou o Eusébio na final de 1963, se eram 3 ou 2, se foram na primeira ou na segunda parte. Ficavam vermelhos de fúria, iam buscar tantas outras finais, jogadores, treinadores, e até o coitado do Francisco Ferreira que parece que sabia nadar. Quando a coisa se tornava insustentável alguém lá lhes ía dizer que em 1963 o Benfica nem se quer jogou a final e estavam a confundir com a de 1962, em que ganhou 3-0 ao Vitória de Setubal.

Todos conhecemos um destes: um mini canalhazinho, quase simpático, quase amável. O tipo que faz fretezinhos quando lhe interessa, vítima da sociedade mas só um bocadinho. Aproveita o frete, a boleia, a refeição casual para fazer queixinhas e ganhar pontinhos. fazer-se de útilzinho e ganhar pontinhos com o patrão com os velhinhos, tadinhos. No entanto, quando se apanha sozinho ou com mais pequeninos vira Hitler, Hitlerzinho da Trafaria. Ele é que manda, que coordena, que diz e desdiz, que põe e dispõe, e nunca por nunca ser acarta com volumes pesados para não estragar as mãos. Ele decide as roupinhas das senhoras que trabalham com ele porque poucas vergonhas não! Ele agora manda, manda na roupa das senhoras! O Hitlerzinho da Trafaria agora é o chefe, o patrão, presidente, o rei, deus nosso senhor no céu e o canalha cá na terra. Manda para ter muito muito dinheiro e ser mais e mais grande que os amiguinhos todos. Roubou aos amiguinhos para ser grande mas agora é. E manda nas senhoras, na roupa das senhoras! É patrão das senhoras e dos senhores e manda para ter dinheirinho, muito dinheirinho!

Mãe, vou morrer. Tenho uma doença grave, gravíssima, e desta gripe não passa. Não tenho mais mulher para me servir nestes instantes fúnebres. Preciso de xá, torradas quentinhas e saber a que horas tenho que voltar a tomar o Brufen, a parasetamol, o coiso da água do mar no nariz e a pastilha para a tosse. Não tomei nada disso, claro, porque não vou morrer com porcarias no corpo e amanhã vou jantar com os gajos, e tenho medo de beber com medicamentos. Preciso na mesma que me digam a que horas tenho que tomar essas tretas para que saiba que estão solidárias comigo, As mulheres, as vítimas colaterais da gripe masculina. Áh, e também para perceber a que horas tenho menos ranho para ir ao ginásio apanhar frio e parecer forte.

Nunca uma Sofia me desiludiu. Tenho várias na minha vida: A Sophia, com PH, essa; a minha prima Sofia, que tem mais nomes e foi mãe de gente desde sempre; a minha amiga Sofia, que é do norte e, por conseguinte, fala alto ao telefone com os pais; e a minha irmã, que fala um bocadinho mais baixo pois é só metade de Sofia.

Um dia, se surgir uma senhora respeitável que queira e saiba das artes de criar uma Sofia, pode ser que nos entendamos.

Sabe-se, pela teoria da relatividade geral, que a gravidade provoca uma curvatura no espaço-tempo que faz com que o caminho mais rápido entre dois corpos é um deles andar às voltas do outro, eternamente, até que último morra ou vire supernova, que é também forma de morrer. Isso ou o primeiro levar com uma pedrada celeste e perder-se para sempre.

Isto é física que, com alguma pena minha, não é explicada pela física mais clássica e intuitiva.

Prometer é não cumprir uma parte. Promete-se tudo, O mais, o mundo. Quem promete sem risco não cumpre. Não é.

Confundo-me com as promessas de mulheres. Os tiques, Os cliques, Os Cheliques, Tudo para que fiques Numa noite em que não esteja cansada, Da vida, da rua, Noite própria, idealizada, Que não foi. Que não há.

Não devia prometer e não me deviam prometer. Mesmo que sem querer. Não se cumpre. Há mais noites que não estão prometidas. Podiam-se cumprir num vislumbre Se não se prometer.

Acho que sempre tive uns quantos amigos imaginários que se confundem comigo, Umas personagens, muito premiáveis aos tempos e às companhias, que sempre fizeram parte de mim. Talvez por serem também eu ou mim nunca foi problema: não são amigos com vidas próprias nem famílias próprias nem pessoas próprias. São eu em versões várias, apropriadas ou desapropriadas às situações, conforme me for mais divertido. são também amigos que eu trago para me fazerem companhia no aborrecimento de estar sozinho no meio de pessoas. Só as pessoas com quem não estou sozinho me têm, ou só a mim ou eu com as personagens todas, todas ao mesmo tempo. Eu a ser meu amigo, portanto.

Não há mal nenhum em ter-se amigos imaginários, desde que os não partilhemos com ninguém. Partilhar amigos imaginários dá muita confusão, depois ninguém concorda em como os adorar. Muita guerra se travou, em particular aquelas com números redondos de anos que não coincidem com as datas reais como a guerra dos 80 anos (entre a Espana e Holanda) e pior, a dos 30 anos (entre todos contra todos). Foi tudo para se decidir o que se tolera como forma válida de adorar um amigo imaginário, e a bem dizer, o pai do amigo menino imaginário. Morreu muita gente claro, morre por tanta coisa... Ao menos criaram-se as bases para a diplomacia moderna.

Enter your email to subscribe to updates.